26.8.10

Que te congela?

Conforme os dias iam passando, ele ia construindo uma nova identidade. Era metamórfico - culpa do determinismo - sua opinião sempre mudou muito conforme o ambiente lhe atribuía novas perspectivas de vida, era adaptável, maleável, volúvel, e, por vezes, de tão humano, inconsistente. Não se pode dizer, porém, que tais atributos lhe conferiam um demérito de caráter. É sabido o tamanho uso que um caráter faz de tais desníveis de conduta, são sua matéria prima!
- Nossa, como ele é sério né!? Diziam, e ele ria internamente, há muito aprendera aguardar pra si sua vilania, seu veneno, o destilava na vida privada.
Mas que vida privada?
Todo o contato humano que estabelecia se baseava no abrandamento de sua personalidade. Os bebês eram sempre lindos e fofinhos, os tortos eram respeitados com solenidade imprudente, as piadas prontas eram desperdiçadas sem auditório, a moral, inabalável.
Mas tudo isso gerava uma profunda inquietação no fundo de sua alma: se na maior parte do tempo ele não era mau, e na verdade só seus pensamentos eram maléficos, e não suas ações, não estaria ele em franca crise de identidade? Não seria ele bom, enquanto fantasiava que suas atitudes louváveis seriam um disfarce? Há como disfarçar 24 horas por dia? E se sua acidez fosse uma armadura protegendo sua natureza simples? Bondoso de coração? O gelo viria de dentro pra fora ou de fora pra dentro?

19.8.10

A Ninfa

Jovial, uma menina saltita pelos canteiros com seu vestido manchado. Seu marido a espera. Ela ainda é nova pra essas coisas de marido, e ainda nem o conhece, mas ele a espera. Sete anos de espera no alto de um penhasco.
Ela vem no rastro de uma borboleta, negra a borboleta. No penhasco há uma trilha estreita pela qual se atinge o topo, e no topo é onde mora o inseto. Ela não a viu como inseto, tomou-lha por amiga e foi em seu enlace. Era o incesto de seu marido o inseto. A ninfa morre e vive de novo, morte e vida são irmãs apaixonadas. E a menina galga o topo, estica o braço no vazio pra alcançar a borboleta. Seu marido a espera. O vôo é sinuoso e espiralado, em um impulso ela quase alcança as asas. Sete anos de espera. E o vento ventou, empurrou o corpo da menina junto ao da borboleta ela de súbito a agarra, esmaga-lhe o exoesqueleto e suas entranhas escorrem pelo vãos de seus dedos fofinhos e pequeninos de meninota. Ao marido só o petisco, ao vestido, outra mancha.

4.8.10

Memórias de Um Sargento de Milícias

"... as Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, estão isentas de qualquer traço idealizante e procuram despregar-se da matéria romanceada graças ao método objetivo de composição, próximo do que seria uma crônica histórica cujo autor se divertisse em resenhar as andanças e os pecadilhos do uomo qualunque.

Em Macedo a veracidade dos costumes fluminenses aparece distorcida pela cumplicidade tácita com a leitora que quer ora rir, ora chorar, de onde resulta um realismo de segunda mão, não raro rasteiro e lamuriento. Em Manuel Antônio, o compromisso é mais alto e legítimo, porque se faz entre o relato de um momento histórico (o Rio sob D. João VI) e uma visão desenganada da existência, fonte do humor difuso no seu único romance.

Dizia um velho professor de literatura espanhola: "El Problema del pícaro es un problema de hambre". E o romance picaresco, de origem espanhola, desde o Lazarillo de Tormes (1554) à Vida de Guzmán de Alfarache de Mateo de Alemán (1604) e ao Búscon de Quevedo (1626), assentava-se inteiramente nas aventuras de um pobre que via com desencanto e malícia, isto é, de baixo, as mazelas de uma sociedade em decadência. Mundo em que a brutalidade e a astúcia traziam as máscaras da coragem e da honra. O pobre, no seu afã de sobreviver, transformava-se em pícaro, servido ora a um ora a outro senhor e provando com o sal da necessidade a comida do poderoso. Ao pícaro é dado espiar o avesso das instituições e dos homens: o seu aparente cinismo não é mais que defesa entre vilões encascados. Mas cada contexto terá seu modo de apresentar o pícaro, As aventuras de Gusmán na Espanha barroca não se repetirão no Diabo Coxo e no Gil Blas do saboroso Lesage que, apesar das fontes castelhanas, é bem francês e leitor de La Bruyère, pelo cuidado com que pinta o retrato moral dos figurantes. Figurantes e não personagens movem-se no romance picaresco do nosso Manuel Antônio que, ao descartar-se dos sestros da psicologia romântica (em 1853, aos vinte e um anos de idade!), enveredou pela crônica de costumes onde não há lugar para a modelagem sentimental ou heróica ("O homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo"), nem para o abuso da peripécia inverossímil.

Desde a primeira linha, o leitor sente o interesse em tudo datar e localizar com precisão:

Era no tempo do Rei

Uma das quatro esquinas que formam as Ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se naquele tempo "O canto dos meirinhos". ".

"A mesma atenção é dada aos homens e mulheres que vão e vem pelos becos do velho Rio, e dos quais o observador nota ora o ofício (“ fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria"), ora os caracteres físicos: "Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona...";” um colega de Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato e o sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante “...

Mas o realismo de Manuel Antonio de Almeida não se esgota nas linhas meio caricaturais com que define uma variada galeria de tipos populares. O seu valor reside principalmente em ter captado, pelo fluxo narrativo, uma das marcas da vida na pobreza, que é a perpétua sujeição à necessidade, sentida de modo fatalista como o destino de cada um. Esse contínuo esforço de driblar o acaso das condições adversas e a avidez de gozar os intervalos de boa sorte impelem os figurantes das Memórias, e, em primeiro lugar, o anti-herói Leonardo, "filho de uma pisadela e de um beliscão" para a roda viva de pequenos engodos e demandas de emprego, entremeadas com ciganagens e patuscadas que dão motivo ao romancista para fazer entrar em cena tipos e costumes do velho Rio.

É supérfluo encarecer o valor documental da obra. Acrítica sociológica já o fez com a devida minúcia. As Memórias nos dão, na verdade, um corte sincrônico da vida familiar brasileira nos meios urbanos em uma fase em que já se esboçava uma estrutura não mais puramente colonial, mas ainda longe do quadro industrial-burguês. E, como o autor conviveu de fato com o povo, o espelhamento foi distorcido apenas pelo ângulo da comicidade. Que é de longa data, o viés pelo qual o artista vê o típico, e, sobretudo o típico popular."

História concisa da literatura brasileira / Alfredo Bosi - 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.